Leio
num jornal uma frase absurda: “O que me irrita
são as greves dos professores do ensino
fundamental e médio, por estas serem profissões
onde se está por paixão”.
Não
comento o conteúdo acusatório de
toda uma profissionalidade docente, tão
só que o ensino e a educação
ainda são vistos pela janela do sacerdócio,
como se a escola fosse um local de perdoar pecados
e tratar dos problemas da alma.
Ser
professor implica a aprendizagem de uma profissão,
caracterizada por saberes muito diversos, que
vão do humano e relacional ao cognitivo
e prático. Ora, nem sempre, sobretudo nos
cursos de formação inicial e continuada
e nos documentos reguladores das políticas
educacionais, tem existido um olhar abrangente
sobre os saberes docentes, privilegiando-se, de
acordo com objectivos de formação
profissional, os conteúdos ligados à
eficiência e à qualidade centrada
em resultados.
Daí
que, nos dias de hoje, formar professores corresponda,
prioritariamente, a uma tarefa profissionalizante,
vinculada quer a políticas de artimética
e a uma racionalidade orçamentária
(formar cada vez mais professores no mínimo
tempo possível), quer a uma lógica
de qualificação. Para Helena de
Freitas (2004, p. 1097),
(...)
no campo da formação dos profissionais
da educação, estamos vivenciando
o que poderíamos configurar como o retorno
às concepções tecnicistas
e pragmatistas da década de 1970, agora
em um patamar mais avançado, deslocando
o referencial da qualificação do
emprego – qualificação profissional
– para a qualificação do indivíduo
– em que a concepção neoliberal
de competência tem levado a centrar os processos
de formação no desenvolvimento de
competências comportamentais.
O
discurso da formação docente centrada
nas competências comprova a teoria da proletarização,
transformando os professores em “técnicos
cujo dever é cumprir as metas pré-especificadas
e cujo espaço de manobra para exercer o
seu juízo discricionário –
uma das características essenciais de um
profissional autónomo – é cada
vez mais limitado (DAY, 2003, p. 154).
Que
efeitos tem o discurso centrado na competência
na profissionalidade docente?
A
pedagogia das competências, inscrita na
agenda curricular tanto da formação
docente quanto do controlo da aprendizagem escolar,
decorre de um modelo de gestão científica,
tornando-se, por isso, num instrumento que reforça
não só a racionalidade técnica,
mas também as práticas pedagógicas
que delimitam o processo ensino/aprendizagem como
um dispositivo que é justificado pela transmissão
e pelo prolongamento da pedagogia por objectivos.
Bem
distantes desta racionalidade técnica e
de políticas perspectivadas pela lógica
de mercado (PACHECO, 2003), o ser professor é
viver na complexidade, no desafio permanente da
melhoria, na multidimensionalidade do agir e pensar,
na interrogação constante que a
sociedade do cinhecimento lhe coloca. É
nesta sociedade do conhecimento [e da informação]
que nascem novos desafios para a construção
da profissionaliadde docente (HARGREAVES, 2004),
progressivamente pautada por critérios
que de modo algum podem ignorar o humano e o profissional.
Na
construção de um novo profissionalismo
através de uma auto-crítica de aprendizagem,
os professores são os catalisadores da
sociedade do conhecimento, tornando-se vital que
“se envolvam em conjunto na acção,
no questionamento e na resolução
de problemas, em equipas colegiais ou em comunidades
de aprendizagem profissional” (HARGREAVES,
2004, p. 48).
Longe
da utilidade e instrumentalidade da noção
de competência (EVANGELISTA e LOPES, 2003),
sobretudo quando associada ao centralismo administrativo,
à burocracia escolar e à eficiência
dos resultados, a formação docente
ocorre numa sociedade onde “o conhecimento
é um recurso flexível, fluido, sempre
em expansão e em mudança” (HARGREAVES,
2004, p. 34), não sendo necessário
falar da escola como um espaço de compra
e venda de bens de consumo, nas como uma comunidade
crítica de aprendizagem (YOUNG, 1998).
A
ênfase da educação, em geral,
e da formação docente, em particular,
está, por isso, na centralidade do conhecimento,
com a clara tendência para o reforço
de políticas mais eficientes, ainda que
nominalmente designadas por políticas descentralizadas,
de controlo curricular, na mistificação
da aprendizagem ao longo da vida e na religiosidade
da competência.
Acredita-se,
pois, que a solução para os problemas
económicos se encontra na redefinição
do conhecimento através de profissionais
mais competentes e da algebrização
do conhecimento, dado que o sistema educativo
é traduzido em números que expressam
os resultados de aprendizagem e a seriação
das escolas, pretendendo-se ignorar, que “uma
percentagem de 25% do potencial de sucesso dos
alunos (…) continua a ser da responsabilidade
da escola e dos professores” (HOPKINS, 2004,
p. 11).
Também
se ignora o papel que a comunidade educativa tem
no sucesso dos alunos, mormente quando se constitui
numa referência para valores, para práticas
democráticas, tanto no acesso quanto na
avaliação do conhecimento, e para
identidades traduzidas pelo carácter das
regiões e das escolas, onde se reconhece
que o ensino não é uma prática
exclusivamente cognitiva e intelectual, mas também
social e emocional.
A
obsessão pela eficiência e pelo resultado,
cultivada pelos defensores de um escola meritocrática,
embora de raiz democrática, pois à
partida todos têm a mesma possibilidade,
ainda que orwellianamente uns tenham mais hipóteses
de sucesso que outros, transforma a aprendizagem
numa corrida clínica e desapaixonada, orientada
para determinadas metas, [ocupando] o tempo dos
professores com tarefas técnicas, de modo
que não reste qualquer espaço para
a criatividade, para a imaginação
e para o estabelecimento de relações
interpessoais – para tudo aquilo que alimenta
a paixão de ensinar (HARGREAVES, 2004,
p. 94).
Quando
se discute a formação docente, em
função da escola que temos, não
se deixará de questionar o que significa
ser professor em tempos marcados pela transitoriedade
dos discursos e pela desconstrução
de uma imagem social de escola, sobretudo a partir
do momento que se deslegitima a educação
como um direito cultural e passa a ser promovida
como um produto de mercado. Nesta lógica
de competição, a escola é
a alavanca para se entrar numa economia do conhecimento
competitiva e dinâmica2, tornando-se o professor
numa profissão que requer maior controlo
técnico.
Assim,
o principal desafio que a sociedade do conhecimento
nos coloca não é o de seguir a uniformidade
da formação docente, a estandardização
de competências, mas o de problematizar
o docente como pessoa, que luta continuamente
pela construção de uma profissionalidade
deliberativa, libertando-o dos propósitos
das seitas da formação para o desempenho
(HARGREAVES, 2004, p. 236), unicamente voltadas
para o lado cognitivo da aprendizagem. Ser professor
é admitir que há novos modos de
olhar para a riqueza que existe no interior das
escolas. Percorrer este caminho é uma luta
que professores e formadores têm de travar,
sabendo-se que a profissionalidade docente é
algo que nos compromete com a qualidade dos processos
de aprendizagem dos alunos.
Neste
difícil processo de construção
da profissionaliadde docente, com contrariedades
muito diferentes tanto ao nível das escolas
quanto ao nível das administrações
educativas, debate-se o ser professor no palco
da burocracria das tarefas e da sua “funcionarização”,
como se fosse uma actividade susceptível
de aparecer num “guia eficiente de formar
professores”.
De
modo a contrariar esta visão profissionalizante
do docente, diremos que o docente tem que ser
formado a partir de uma base epistémica
comum (JACKSON, 1968), ou de um conhecimento base
de ensino (SHULMAN, 1987). Reconhecer-se-á,
de igual modo, que a instituição
de ensino superior assume um papel cada vez mais
central nesse processo. Todavia, tal natureza
exige a consideração da escola como
um dos contextos de formação, na
medida em que existem saberes, cujo processo aquisitivo
se processa a partir de uma prática pedagógica
real.
Neste
caso, o processo formativo do professor encontra
na prática profissional não só
o contexto de consolidação de um
mundo de crenças próprio, pois,
como concluímos a partir de um estudo longitudinal,
os professores definem e estruturam o seu mundo
de crenças a partir do contacto com a realidade
escolar (PACHECO, 1995), mas também o campo
permanente de (re)construção da
sua profissionalidade. É, por isso, que
na formação de um professor se regista
um processo metacognitivo, isto é, um processo
de articulação da teoria com a prática
em que a actividade de conhecimento se torna objecto
de reflexão (DOLY, 1999).
Autor: José Augusto Pacheco
http://coralx.ufsm.br/revce/revce/2004/02/a1.htm
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